Mahayana vs. Theravada: uma Comparação Múltipla

Mahayana vs. Theravada: a Multiform Comparison

Por John Haas (traduzido por Luis Dantas)

Há diferenças significativas entre os dois principais movimentos do Budismo atual, Mahayana e Theravada. Entre elas, algumas são particularmente importantes para a compreensão de como essas divisões mutuamente exclusivas contrastam entre si. Antes de tratar dessas dessemelhanças específicas, porém, deve-se esclarecer que a principal e fundamental divergência entre os dois grupos, da qual pode-se concluir que todas as demais derivam, é que a prática Mahayana enfatiza uma inclusividade que se apresenta como a antítese da preservação doutrinária Theravada. Enquanto a adaptabilidade do Mahayana tem atraído novos praticantes e alterado a si própria para se ajustar à modernidade, o Theravada mostra uma resistência firme à mudança que lhe permite permanecer como um recipiente fiel do pensamento Buddhista original, questionado mas ainda assim preservado diante de dois milênios de transformações.

Prosseguindo com esta tese, um dos exemplos mais visíveis da flexibilidade(1) (ou, de um ponto de vista mais crítico, revisionismo) da doutrina Mahayana tem sido a adoção do ideal do Bodisatva ao descrever o caminho mais desejável na busca da Iluminação. O modelo sacrificial do Bodisatva coexiste bem com as percepções ocidentais das qualidades que um ser superior deveria possuir - compaixão nos moldes da figura do Cristo e altruísmo. Embora pouca ênfase exista no adiamento responsável do Nirvana nos primeiros ensinamentos budistas, este conceito heróico, que ressoa bem com aderentes mais recentes, tornou-se um dos pontos de sustentação da tradição Mahayana. Portanto, enquanto os budistas Mahayana pregam uma magnânime rejeição da salvação pessoal e fazem dela sua meta última, na disciplina Theravada este grandioso esforço é reservado apenas para os mais capazes. Pode-se portanto concluir que os costumes Mahayana foram formados em larga parte em função das necessidades da religião em atrair novos membros de acordo com as realidades específicas do passado.

Fortalecendo esta argumentação está a clássica incongruência entre as perspectivas Mahayana e Theravada sobre a natureza de Buddha, ou potencial humano inato para a iluminação. Para os teólogos do Mahayana, a humanidade é dotada de uma capacidade inquestionável de atingir uma saída do ciclo de renascimentos. Essa perspectiva positiva é mais fácil de compreender quando contraposta com a filosofia Theravada, um tanto menos agradável, de que a natureza humana é um obstáculo a ser transposto na busca dessa transcendência. Em resumo, a "natureza búdica da humanidade" do Mahayana está em conflito com a idéia Theravada de "natureza humana do Buddha", porque para uma a natureza humana conduz naturalmente à liberdade, enquanto que para a outra ela oferece obstáculos. Portanto, uma natureza-de-Buda florescente, presente mesmo na ausência de auto-realização, a idéia à qual os adeptos do Mahayana aderem, é uma filosofia sedutora, cosmopolita que tem uma capacidade de atrair convertidos muito maior do que a descrição Theravada de fogo-e-enxofre para a condição humana. Não deve surpreender que a interpretação Mahayana, otimista e receptiva, é alvo de muitas objeções entre os Theravadins, que suspeitam que a verdade esteja sendo trocada por números mais amplos.

Existem outras diferenças menores entre o Mahayana e o Theravada, mas não chegam a separá-los de forma tão nítida quanto as acima citadas. Uma dessas diferenças pequenas mas detectáveis é o papel da sangha, ou comunidade espiritual, na prática da fé. Os theravadins, para quem o conceito de "ser uma lâmpada para si próprio" tem significado maior, tendem a pensar na sangha como um instrumento prático, mas não necessariamente útil, na busca da plenitude religiosa. Ou seja, uma coletividade monástica pode ser útil de um ponto de vista econômico no trabalho de iluminação, mas a presença de outros nesse ambiente não influencia a aquisição da iluminação em si. Essa idéia se contrapõe à importância que os mahayanistas frequentemente atribuem a suas congregações, cuja finalidade é prover os membros individuais com encorajamento e apoio mútuo ao longo de suas jornadas espirituais. Mais uma vez, pode-se observar que a alta estima que o Mahayana tem pela sangha atende aos gostos ocidentais e confucionistas, já que as religiões do ocidente frequentemente são praticadas em grupo, e o coletivismo do Confucionismo não entra em conflito com essa postura. Mais uma vez o sincretismo parece ser uma prioridade para os mahayanistas, e uma situação a ser evitada para os theravadins.

Aumentando a lista de disparidades secundárias - mas ainda assim significativas - em comparação às duas cisões iniciais apresentadas está a inconsistência entre escolas a respeito de quanto tempo é preciso esperar após conhecer o Dharma até que haja a possibilidade de Iluminação; enquanto os theravadins aceitam a resposta ortodoxa e canônica de "eons", que eles, como muitos fundamentalistas, interpretam como significando pelo menos várias vidas, é típico das escolas Mahayana optar ou por interpretar "eons" metaforicamente para descrever um longo período na vida presente do praticante ou alternativamente por descartar a necessidade de espera por completo e declarar que a possibilidade de Iluminação é imediata. (Esta última interpretação de iluminação "súbita" é, claro, uma crença exclusiva do Zen, e portanto não deve ser considerada representativa da tradição Mahayana). Com tamanha gama de possibilidades, não deve surpreender o observador perceber que cada variedade de buscador tem uma disciplina budista correspondente, e que o modus vivendi agitado dos ocidentais é mais fácil de ajustar à prática Mahayana. A gratificação instantânea que a era moderna tornou possível, e que seus cidadãos hoje esperam ter convenientemente acessível, pode explicar muito da popularidade do Mahayana, e especialmente do Zen, no mundo desenvolvido. Portanto, a maleabilidade do Budismo sob a bandeira do Mahayana novamente parece ter aberto a fé para neófitos, ainda que possivelmente ao custo de comprometer sua própria mensagem.

Por fim, parece que o espírito de concessão liberal que as autoridades do Mahayana trazem à formulação de cânones - construindo terminologia um tanto imprecisa e emfatizando elementos de forma algo arbitrária - existe de uma forma análoga no meio político, onde políticas "liberais" frequentemente são aceitas pelas organizações religiosas. Embora tanto o Theravada quanto o Mahayana tenham uma tendência a se identificar mais com correntes de esquerda do que outras crenças, o tema divisivo do aborto dividiu essas duas correntes do Dharma da mesma forma que fez com o público norte-americano em geral. Este assunto específico de debate é um exemplo de como ambos, ainda que considerados altamente correlatos no que se refere à perspectiva política, ainda assim podem divergir dramaticamente em linhas de ortodoxia-e-reforma. Com a recusa do lado Theravada em reconhecer o direito de escolha da mulher em quaisquer circunstâncias, e a adoção pelo Mahayana de uma posição mais atenuada e modificada pelo contexto político e social, reconhecendo o direito à vida ao mesmo tempo que propõe atenuantes, fica aparente que a variedade promulga um sistema de valores que corresponde mais de perto ao da população da era moderna. Portanto, a mentalidade Mahayana se afasta mais uma vez do tradicionalismo para favorecer a camaradagem, que sem dúvida se propaga a sensibilidade à opinião pública.

Os exemplos precedentes foram oferecidos para reforçar o postulado de que, ainda que uma ampla variedade de discordâncias exista entre os dois veículos mais proeminentes da transmissão budista, suas origens remetem a uma única e reduzida diferença de opinião - quanto a se uma mudança da guarda e resultante incremento numérico é preferível a uma conservação da tradição que possa em tese alienar novatos.


Significant differences abound between the two principle schools of modern Buddhism, Mahayana and Theravada. Among the many distinctions that exist, a few could be considered especially integral to an understanding of how these mutually exclusive divisions contrast with each other. Before treating these specific dissimilarities, however, it must be established that the one, fundamental divergence between the sects, which could possibly be understood as resulting in the following earmarks that make both brands unique unto the other, is that Mahayana practice stresses an inclusiveness that stands antithetically to Theravada’s doctrinal preservation. Where the former sort’s adaptability has both attracted new practitioners and altered itself to complement modernity, the latter’s staunch resistance to change has allowed it to remain an uncompromised vessel of original Buddhist thought, battered by, yet having weathered well, two millennia’s worth of transformation.

Building upon this thesis, one of the most overt examples of Mahayanistic lability (1), or revisionism from a more critical perspective, has been its adoption of the Bodhisattva ideal in outlining the preferable path for an enlightened individual to take. The sacrificial model of the Bodhisattva coexists well with western perceptions of what qualities a superior being should possess—Christ-like compassion and selflessness. Even though little emphasis was placed on any dutiful forbearance of Nirvana in the first teachings of Buddhism, this heroic concept, resounding well with newer followers, has become mainstay in Mahayana tradition. Thus, where Mahayana Buddhists preach a magnanimous rejection of personal salvation as being their terminal goal, this lofty effort is reserved for only the most capable in the Theravada discipline. It could therefore be concluded that Mahayana customs have been carved largely from what the religion has needed to attract adherents at any given time in the past.

Buttressing the offered argument further is the classic incongruity between Mahayana and Theravada perspectives on the Buddha-nature, or innate human potential for enlightenment. For the theologians in the former camp, humanity is endowed with an unquestionable capability to achieve an escape from the cycle of rebirth. This positive outlook is usually better understood when juxtaposed with the somewhat less savory, Theravada philosophy that humanity is a hurdle to be overcome when striving for said egress. Summarily, the Mahayana “Buddha-nature of humanity” is at odds with the Theravada “human nature of the Buddha” because for one, humanity is conducive to freedom, whereas for the other, it is deleterious. Ergo, a Buddha-nature rosily present even in the absence of self-actualization, the idea to which Mahayanas subscribe, is an alluring, cosmopolitan philosophy that has a much more promising capacity to draw converts than the fire-and-brimstone, Theravada proscription of the human condition. It should be no surprise that the optimistic and welcoming Mahayana interpretation is subject to much objection among Theravadas, who feel that the truth is being exchanged for larger numbers.

Although additional differences don’t sunder the two factions to the extent of the ones hitherto described, there are still several other wedges that noticeably segregate Mahayanas and Theravadas into discrete blocs. One of these minor-but-nonetheless-noteworthy distinctions is the role of the sangha, or spiritual community, in the practice of the faith. Theravadas, for whom the concept of “be[ing] a lamp unto [one]self” holds heightened meaning, generally regard the sangha as being a practical, but not necessarily useful, instrument in garnering religious fulfillment. That is to say, a monastic collective may be an economically sound setting in which to work toward enlightenment, but the presence of others in such an environment has no bearing on the actual acquisition thereof. This runs counter to the import Mahayanas often place upon their congregations, whose function it is to provide individual members encouragement and mutual support throughout the course of their spiritual journeys. It could be again observed that the Mahayanistic high status afforded the sangha caters to western and Confucian tastes, as the religions of the former are often observed in gatherings, and the collectivism of the latter would not prove conflictive. Syncretism once more seems a priority for Mahayanas and a fate to be avoided by Theravadas.

Expanding the list of disparities secondary to, but not paltry in regards, the first two cleavages presented is the cross-school inconsistency over the issue of how soon upon exposure to the dharma one must wait until enlightenment is achievable. While the Theravadas have chosen to accept the canonically orthodox response of “eons,” which they, as many fundamentalists, would suggest connotes at least several lifetimes, it is typical of the Mahayana school to either adopt “eons” to metaphorically describe a long period of time during one’s current life, or to discard it altogether by pronouncing that it’s immediately attainable. (Of course, the concept of previous allusion, “sudden” enlightenment, is a belief exclusive entirely to Zen, and thus should not be considered representative of the Mahayana tradition.) With such a range of possibilities, it should come as no surprise to the onlooker that every variety of seeker has a corresponding Buddhist discipline, and that the fast-pace modus vivendi of westerners may be best accommodated by Mahayana practice. The instant gratification that the modern age has made possible, and that its inhabitants have grown to expect, may account for much of the popularity of Mahayana, and especially Zen Buddhism, in the developed world. Therefore, the malleability of Buddhism under the Mahayana banner again seems to have opened the faith up to neophytes, although perhaps at the cost of undermining its own message.

Finally, it would appear as though the spirit of liberal concession Mahayana authorities bring to formulating canon—construing broadly imprecise terminology and emphasizing choicer elements—exists analogously in the political realm, “liberal” policies often accepted by the religious establishment. Although both Theravada and Mahayana sects often identify moreso with the American left than other creeds, the divisive issue of abortion has split these two vessels of the dharma just as it has the American public. This single matter of debate is an exemplar of how both, even when considered highly correlative in regards political perspective, may still diverge dramatically along an orthodox-reformist divide. With the Theravada fold refusing to recognize a woman’s right to choose under any circumstances, and Mahayana’s approach being a more modified and mollified position, recognizing a right to life, but offering extenuations, it becomes apparent which variety promulgates a value system that corresponds more closely with that of the populace of the modern era. Hence, the Mahayana mindset departs from traditionalism again to promote fellowship, which sensitivity to public opinion will undoubtedly propagate.

The preceding examples have been offered to reinforce the postulation that, while a wide variety of disagreements exists between the two most prominent vehicles of Buddhistic transmission, their origins lie in one, reduced difference of opinion—whether or not a changing of the guard and a resultant boost in numbers is preferable to a conservation of tradition capable of alienating newcomers.


Notas

(1) - "lability" no original. A palavra me passou despercebida na primeira versão da tradução; no dia 22 de maio de 2005 eu supus que fosse um erro de digitação e que a palavra correta fosse "liability", o que mudou consideravelmente o sentido deste parágrafo. "Lability" é uma palavra real da língua inglesa e tem o sentido aproximado de "maleabilidade", "capacidade de mudar e se ajustar".


Documento original em http://www.freewebs.com/haastexts/Mahayana%20and%20Theravada.htm

Há um elucidador comentário a este texto (por Ricardo Sasaki) no sítio web do Centro Nalanda. O URL específico é http://www.nalanda.org.br/sala/maha_thera.php

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