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7. A Origem Dependente na Sociedade

 

 


O sutta mais longo do Cânone em Pali que trata da Origem Dependente é o Mahanidana Sutta [DN.II.55-71] (DN 15) . Nesse sutta o Buda explica o princípio da condicionalidade tanto sob a perspectiva do indivíduo, como ele ocorre dentro da mente e também no contexto social, como ele ocorre nas relações humanas. Até agora lidamos exclusivamente com o princípio da Origem Dependente tal como ele ocorre na consciência humana individual. Antes de deixar este tema seria portanto apropriado mencionar brevemente como a Origem Dependente opera na escala social.

 

O ciclo da Origem Dependente descreve o surgimento dos padecimentos sociais seguindo o mesmo esquema do surgimento do sofrimento no nível pessoal, exceto que a partir do desejo ele diverge para uma descrição de eventos externos:

 

“Então, Ananda, na dependência do desejo surge o apego; na dependência do apego surge a busca; na dependência da busca surge o ganho; na dependência do ganho surge a decisão; na dependência da decisão surge o desejo e cobiça; na dependência do desejo e cobiça surge o apego; na dependência do apego surge a posse; na dependência da posse surge a mesquinharia; na dependência da mesquinharia surge a salvaguarda; e devido à salvaguarda, muitos fenômenos ruins e prejudiciais surgem – tomar clavas e armas, conflitos, brigas e disputas, linguagem ofensiva, difamação e falsidades.” [19]

 

Abaixo segue uma comparação da forma como o princípio da Origem Dependente opera no nível pessoal e social.

 

IgnorânciaàImpulsos VolitivosàConsciênciaàMaterilidade-MentalidadeàMeios dos Sentidosà

 

Apegoà Vir a Ser à Nascimento à Envelhecimento e morte, lamentação....sofrimento na vida

 

à Contatoà Sensaçãoà Desejoô

 

            Busca à Ganho à Decisão à Desejo e Cobiça à Apego àPosse à Mesquinharia à

Salvaguarda à Conflitos, disputas, brigas,linguagem ofensiva,difamação, falsidades... sofrimento na sociedade

 

Para compreender a cadeia de eventos acima com mais clareza, vejamos alguns exemplos descritos pelo Buda em outros textos, tal como o ciclo de nanatta (diversidade), que pode ser resumido da seguinte forma:

 

Dhatunanatta (diversidade dentre os elementos) => phassananatta (diversidade dos contatos) => vedanananatta (diversidade das sensações) => saññananatta (diversidade das percepções) => sankappananatta (diversidade dos pensamentos) => chandananatta (diversidade dos desejos) => parilahananatta (diversidade das agitações) => pariyesananatta (diversidade da busca) => labhananatta (diversidade do ganho). [20]

 

A primeira seção, de dhatu até sañña, pode ser re-fraseada simplesmente assim: devido à múltipla proliferação dos elementos, surge a múltipla proliferação das percepções. Em um outro texto do Cânone em Pali a seguinte seqüência de eventos é descrita:

 

Dhatunanatta (diversidade dentre os elementos) => saññnanatta (diversidade das percepções) => sankappananatta (diversidade dos pensamentos) => phassananatta (diversidade dos contatos) => vedanananatta (diversidade das sensações) => chandananatta (diversidade dos desejos) => parilahananatta (diversidade das agitações) => pariyesananatta (diversidade da busca) => labhananatta (diversidade do ganho). [SN.II.140-149]

 

Essa seqüência demonstra um processo que conecta a experiência mental individual com os eventos externos, mostrando como a origem dos problemas sociais e do sofrimento se encontram nas impurezas da mente humana. A seqüência é bastante elementar, mostrando apenas um esboço do desdobramento dos eventos. Explicações mais detalhadas, enfatizando situações mais específicas aparecem em outros Suttas, tal como no Aggañña [DN.III.80-98] (DN 27), no Cakkavatti [DN.III.58-79] (DN 26) e no Vasettha [Sn.594-656]. Esses suttas são os modelos de como a Origem Dependente opera no nível social. Eles explicam o desenvolvimento dos eventos na sociedade humana, tal como o surgimento das estruturas de castas, como resultado da interação entre as pessoas e o ambiente à sua volta. Em outras palavras, esses fenômenos são o resultado de uma interação em três níveis: seres humanos, sociedade humana e todo o ambiente natural.

 

As sensações que experimentamos dependem do contato sensual, as quais, além dos fatores internos existentes tal como a percepção, dependem de fatores sociais e ambientais. Na dependência da sensação, surge o desejo, resultando na diversidade de comportamentos humanos tanto em relação a outras pessoas bem como em relação ao mundo à volta deles, limitados pelas restrições definidas pelas circunstâncias sociais e ambientais. Os resultados dessas ações também afetam todos os demais fatores. Os seres humanos não são os únicos fatores determinantes no desenvolvimento social e ambiental, e o ambiente natural não é o único fator determinante no condicionamento dos seres humanos ou da sociedade. Todos eles constituem um processo de relações interdependentes.

 

Um trecho do Aggañña Sutta demonstra a seqüência da evolução social de acordo com causa e efeito da seguinte forma:

 

As pessoas se tornam preguiçosas e começam a armazenar arroz (antes o arroz era abundante e não havia necessidade de armazená-lo) e esta se torna a prática preferida => as pessoas começam a armazenar suprimentos => pessoas inescrupulosas começam a roubar dos outros para aumentar suas posses => terminando em censura, mentira, punição e contenção => pessoas responsáveis, vendo a necessidade de uma autoridade, nomeiam um rei => algumas das pessoas, desiludidas com a sociedade, decidem dar fim às ações ruins e cultivar a prática da meditação. Algumas delas vivem próximas das cidades e estudam e escrevem escrituras; elas se tornam os Brâmanes. Aquelas que permanecem com suas famílias obtêm o seu sustento por meio de várias profissões; elas se tornam os artesãos. O restante das pessoas, incultas e incapazes, se torna a plebe. Dentre esses quatro grupos um grupo menor se separa, abandonando a tradição e a vida em família e adotando a ‘vida santa.’ Eles se tornam os samanas.

 

O objetivo desse Sutta é explicar o surgimento das várias classes sociais como um aspecto do desenvolvimento natural baseado em causas associadas, não como mandamentos de um Deus todo poderoso. Todas as pessoas são igualmente capazes de ter um comportamento bom ou ruim e todas irão colher os resultados de acordo com a lei natural; daí todos os seres serem igualmente capazes de alcançar a iluminação se praticarem o Dhamma da forma correta.

 

O Cakkavatti Sutta mostra o surgimento do crime e do padecimento social de acordo com a seguinte seqüência de causa e efeito:

 

(O governante) não comparte a riqueza com os pobres => abunda a pobreza => abunda o roubo => abunda o uso de armas => abunda matar e mutilar => abunda mentir => calúnia...atos sexuais ilícitos...linguagem grosseira e frívola...cobiça e raiva... entendimento incorreto => luxúria pelo que é errado, cobiça, ensinamentos incorretos, desrespeito pelos pais, idosos e religiosos =>a longevidade e a aparência degeneram.

 

É interessante observar que nos tempos modernos, os esforços feitos para tentar resolver os problemas sociais raramente estão sintonizados com as suas causas reais. Eles buscam proporcionar expedientes provisórios, tal como estabelecer aconselhamento para viciados em drogas e delinqüentes, mas não se investiga profundamente, antes de mais nada,  as condições sociais que influenciam o surgimento desses problemas, tais como o consumismo e os meios de comunicação de massa. Nesse aspecto, o ensinamento Budista da Origem Dependente no nível social oferece um precedente valioso para uma inteligente e verdadeiramente eficaz análise e reforma social.

 

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Notas:

 

 

19. DN.15.9; essas nove condições aparecem em outros textos intituladas as nove condições enraizadas no desejo (tanhamulakadhamma), tal como no DN.III.289; AN.IV.400; Vbh.390. [Retorna]

 

20. DN.III.289; Ps.I.187; a palavra “elementos” (dhatu) neste caso se refere aos dezoito elementos: seis bases dos sentidos internas (órgãos dos sentidos), seis bases dos sentidos externas (objetos dos sentidos) e seis consciências. [Retorna]  


Revisado: 1 Fevereiro 2003

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