Especulações sobre a natureza, origem e utilidade da Moral e da Ética

por Luis Dantas

Assim como religião, moral e ética são conceitos difíceis de definir, a despeito da frequência com que são usados (para fins deste texto vou considerá-los como sinônimos). Como ateu militante, conheço muita gente que parece convicta de que moral e ética são puro condicionamento social. Como religioso, conheço muitas pessoas que acreditam sinceramente que precisam adotar certos valores e posturas que me parecem francamente destrutivos. Entre esses dois extremos (que não são tão opostos assim) há um riquíssimo (e por vezes aflitivo) espectro de vivências e cognições, experiências e valores, "receitas de bolo" e aprendizados de vida.

Um erro cometido com frequência tanto por religiosos muito dedicados quanto por adversários e detratores dos "valores tradicionais" é ver a moral como algo estático e necessariamente restritivo. Essa situação de restrição pode vir a ser necessária, mas deve ser evitada pelo bom motivo de que causa tensões que acabam por vir à tona, possivelmente quando menos sabemos lidar com elas. Eu toco nesse ponto em uma entrada recente de meu blog (reproduzida abaixo).

É um fato dolorosamente claro que simplesmente ter regras rígidas e exigir que elas sejam cumpridas não é uma grande solução para ninguém. Uma boa moral não apenas não deve ser estática e rígida, como NÃO PODE sê-lo. Como bem percebe e ensina Ender em "O Orador dos Mortos" (veja as sugestões de leitura abaixo), nossos critérios morais se tornam MAIS FLEXÍVEIS à medida que crescemos, aprendemos, ganhamos experiência e autoconfiança.

Pelo que entendo, moral é a sistematização dos critérios que se usa para decidir o que é ou não cabível em nosso comportamento. Serve, portanto, para orientar nossas escolhas, e para tal inevitavelmente busca algum tipo de equilíbrio entre nossas vontades individuais e as consequências prováveis das nossas ações.

Como essas consequências dependem de um ambiente que não está sob nosso completo controle, esbarramos em um paradoxo muito similar ao que evidenciei no meu conceito de religião: embora seu propósito seja proporcionar certezas, a moral precisa sempre lidar com incertezas, e uma moral absoluta nunca será realmente útil.

Mais do que isso, uma moral saudável pode e precisa se pôr à prova, conferir suas previsões com os resultados efetivamente observados. Precisa buscar bases factuais para se aprimorar.

Dinâmica da Espiral

Segundo a teoria de desenvolvimento de valores da Dinâmica da Espiral (veja as referências de leitura abaixo), os valores se alternam entre abordagens altruístas/coletivistas e individualistas. Quando nossos valores presentes se mostram incapazes de fornecer a segurança de que precisamos, a própria compreensão da natureza dessa falha sugere um modelo de valor mais complexo, mais abrangente e mais ambicioso que seja capaz de lidar de forma satisfatória com a situação que pôs em colapso o modelo de valores anterior.

É uma idéia interessante, não apenas pelo valor descritivo mas também pelas implicações. Por exemplo, não se pode realisticamente esperar que haja um único conjunto de valores morais em qualquer cultura passada, presente ou futura. Pelo contrário, é necessário e saudável que vários estágios de desenvolvimento de valores morais coexistam na mesma cultura. Só assim as pessoas podem estar plenamente presentes ao passar pelas experiências pessoais que levam à formação de valores. O bebê deve aprender que chorar demais deixa a mãe cansada e mal-humorada, o aluno de ensino básico grau deve aprender que ser submisso demais leva à exploração da parte dos colegas de classe e à falta de popularidade com os colegas. É certamente possível usar de força, constrangimento e repressão para impor certos comportamentos, mas isso não é verdadeiro desenvolvimento de valores éticos; quem não COMPREENDE que bons motivos pode haver para agir de uma certa forma não tem como desenvolver valores que levem a essa atitude. Ditadura não cria valores morais - pelo contrário, destrói as condições necessárias para desenvolvê-los, como nós brasileiros bem sabemos. No outro extremo, sem troca efetiva, sem amizades, sem laços de compromisso não há necessidade nem condição de desenvolver verdadeiros valores. Anarquistas radicais, hedonistas sem empatia pelos outros, farristas inconsequentes não tendem a desenvolver bem seus valores morais. E ao contrário do que pode parecer em um primeiro momento, essa carência os prejudica.

Isso porque, quando corretamente estabelecida (em qualquer dos estágios de desenvolvimento) a moral tem um grande valor prático; ela é a ferramenta que permite um convívio cooperativo com o meio social, que impede que os indivíduos estejam sempre e constantemente paralisados por teias de estranheza, desconfiança e falta de familiaridade recíproca.

Há, sem dúvida, desafios na convivência simultânea de vários níveis de desenvolvimento moral em uma mesma cultura. A formação de "tribos", comunidades restritas, grupos de afinidade não é uma solução completa, porque não resolve a questão da formação de crianças e adolescentes. Qualquer verdadeira solução para a questão dos valores morais precisa ser ambiciosa o bastante para oferecer formas de lidar com aqueles que tem valores mais incipientes do que os nossos próprios, bem como com os que são mais ambiciosos e tem visão mais ampla.

Penso eu que para um desenvolvimento moral saudável (tanto do indivíduo quanto da sociedade), o caminho passa por em primeiro lugar aprender a estar em paz diante dessa diversidade de estágios. Renunciar, portanto, a sonhos absurdos de que "algum dia todos verão que eu estou certo", a delírios de grandeza para auto-afirmação, a lamentos de incompreensão que escondam o desejo secreto de ser consolado.

Portanto, em cada um dos estágios, há algumas qualidades que são constantemente desejáveis e que devemos procurar desenvolver:

Nossas crianças não precisam que lhes digamos como elas devem agir desde cedo. Precisam, isso sim, da oportunidade de aprender como o mundo funciona (na medida em que sua compreensão em desenvolvimento lhes permita assimilar) e de cultivar o gosto por fazer algum tipo de conquista ao mesmo tempo que correm riscos. Ou, possivelmente, de descobrir em si a vontade de fazer alguma diferença para os outros, seguir algum tipo de sacerdócio, de devoção em prol do benefício das massas. São duas formas de humildade (não necessariamente mutuamente excludentes) que sustentam os verdadeiros sentimentos de realização e segurança. Muitas psicopatologias frequentes são consequência de um esforço excessivo em seguir valores que não se tem verdadeiramente internalizados, porque não foram devidamente aprendidos. Medo de castigo e pressão dos pares são forças poderosas, mas por si só não podem garantir a compreensão necessária para evoluir moralmente além do estágio das crianças birrentas.

Última atualização em 12 ago 2005


Leituras adicionais (muitas das quais expõem perspectivas que eu não apóio ou mesmo aprovo):


Trechos de "O Orador dos Mortos" de Orson Scott Card (Editora Aleph, 1990).

Também encontrado em edição portuguesa como "A Voz dos Mortos" (Editorial Presença, 2003, ISBN 9722330950).

Introdução do Capítulo 1

Como ainda não nos sentimos inteiramente à vontade com a idéia de que o povo da aldeia vizinha é tão humano quanto nós, é extremada presunção supor que poderíamos olhar para criaturas sociáveis, criadoras de utensílios surgidos de outras vias evolucionárias e não ver nelas animais, mas irmãs; não rivais, mas companheiras de peregrinação ao sacrário da inteligência.

Mas é o que eu vejo - ou aspiro a ver. A diferença entre raman e varelse não está na criatura avaliada, mas na criatura que avalia. Quando declaramos que uma espécie alienígena é raman, não significa que eles ultrapassaram um limiar de maturidade moral. Significa que nós é que o ultrapassamos. (grifo meu).

Capítulo 2

A língua nórdica reconhece quatro graus de estranheza. A primeira é o estrangeiro ou utlänning, o estranho que reconhecemos como humano de nosso planeta, mas pertencente a outro país ou cidade. O segundo é o franling - Demóstenes meramente omitiu o trema do nórdico fränling. Este é o estranho que reconhecemos como humano, mas de outro planeta. O terceiro é o raman, o estranho que reconhecemos como humano, mas de outra espécie. O quarto é o verdadeiro alienígena, o varelse, que inclui todos os animais, pois com eles não é possível conversar. Eles vivem, mas não podemos adivinhar que propósitos ou causas os fazem agir. Eles podem ser inteligentes, ter autoconsciência, mas não podemos saber.

(...)

Examinem a si mesmos neste momento, pediu Andrew. - Vão descobrir que por baixo de seu ódio por Ender, o Xenocida, e sua dor pela morte dos insecta, também há algo muito mais feio. Tem medo do estrangeiro, seja ele utlännling ou framling. Quando pensam nele matando um homem que conhecem e respeitam, não importa a forma dele, passa a ser varelse, ou pior: djur, a fera que vem pela noite, com as garras afiadas.


Originalmente no meu blog em 05 ago 2005:

A falácia do espantalho e a violência dos videogames


O episódio de hoje de "O Toque de um Anjo" é um dos mais destrutivos que já vi.  Trata de um julgamento sobre o futuro de um jovem que atropelou uma moça, supostamente porque foi condicionado pela violência de um videogame ("Carjack 2000").

O fato de que nesse julgamento a juíza é Tess, a suposta anjo-chefe, e o advogado de defesa é um de seus melhores amigos, um anjo da morte, começa a mostrar o quanto esse episódio é incestuoso, desonesto e amedrontado ao lidar com situações do mundo real.

O episódio inteiro é uma gigantesca e preocupante Falácia do Espantalho (http://www.ateusbrasil.hpg.ig.com.br/folhas/textos/falacias.htm#Espantalho).  O jogo em questão é caricato, a ponto de ser difícil de relacionar com os que realmente existem - principalmente quando se mostra que contém níveis secretos que prometem a proteção da Irmandade, representada por um personagem virtual com robe preto, olhos vermelhos brilhantes e com o rosto oculto em sobras.  Só pode ser coisa do Demo mesmo.  Ou mais provavelmente, de roteiristas que não tem a mínima idéia do que um videogame é ou para que serve.  Uma das testemunhas do julgamento chega a dizer que os jovens "não se importam" com certo ou errado.

No fim, Tess decreta que a solução maravilhosa é simplesmente "dizer não", proibir videogames com cenas de violência.

Que falta de noção mais destrutiva.  Será que é tão difícil assim perceber que a vontade de jogar videogames por "dias seguidos" (segundo o episódio) mostra um problema com o resto do repertório social dos jovens, e não com os videogames em si?  Eu jogo videogames.  São ambientes de poucos detalhes, nada realistas, completamente previsíveis.  Ninguém veria muita graça neles se não sentisse falta de segurança, controle sobre a própria vida ou emoções fortes.  Eles não são o problema, não são sequer parte do problema ou da causa do problema.  São um paliativo, uma solução temporária e imperfeita para a frustração e falta de comunhão nas vidas dos jovens.  Querer proibi-los é exigir que encontrem outras formas de lidar com as frustrações e inseguranças.  Na prática, isso quase sempre significa mostrar aos jovens que eles devem confiar ainda menos nos outros (que não conseguem sequer aceitar passatempos inofensivos), ser ainda menos preocupados com as consequências do que fazem (já que serão incompreendidos de qualquer jeito) e se virar por contra própria e manter mais segredos (já que quando se mostram como são causam mágoa e insegurança nos outros).

E aí é que os verdadeiros problemas começam.


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